- Vô Pedro, conte uma história pra gente.
O um dos prazeres do velho de barba branca era deleitar os netos com suas estórias. Seus filhos e filhas não gostavam disso. Todas as vezes as crianças ficavam morrendo de medo e tinham pesadelos. Os pais falavam para elas que eram contos de fadas.
- Contos de fadas. Há! Se seus pais soubessem como são as fadas, não denominariam assim.
- E como são as fadas, vôzinho ? Perguntou a menina mais nova.
- Essa é outra estória, Vi.
"Dois homens pescavam no pantanal, em um barco. O pai, ensinava o filho a pescar com vara de carretilha. Fazia muito tempo que não viajavam juntos, desde que o rapaz havia passado no vestibular. Precisamente, seis anos. Conversavam baixo, para não espantar os peixes. Queriam um belo de um pintado, mas só estavam pescando jaú. O pai comentou:
- Toda vez que venho pescar no pantanal lembro do meu pai, seu avô. Ele vivia me aterrorizando com a lenda do Boitátá, que sempre aparecia em brejos e pântanos.
- A cobra de fogo, pai ?
- É. De vez em quando apareciam algumas luzes em cima da água e ele me dizia que o Boitátá observava. Era um vigilante.
- A propósito, pai, eu disse cobra, mas aqui no Brasil praticamente não existem cobras. É tudo serpente.
- Sério ? Orgulhava-se da inteligência do filho.
- Sim. O filho sabia que o pai, apesar de ser um fazendeiro muito rico, não era muito instruído. Apesar disso era sábio e perspicaz.
- Mais uma coisa pai. Essa lenda da serpente de fogo. Na verdade não passa de uma ilusão. É só fósforo branco.
Parou de falar, por alguns segundos pensou que tinha fisgado alguma coisa. O pai, sem entender o que o filho disse, brincou:
- Só porquê você agora é doutor, não precisa se exibir pro velho."
- Peraí, peraí. Vôce não é médico, vovô ? Essa história é sua com seu pai?
- Mauro! Pra variar, impaciente, né? Vou terminar a história.
"O rapaz respondeu:
- Ah, desculpa pai. Não era a intenção. Fósforo branco é uma substância que é liberada de animais mortos, em decomposição. E quando entra em contato com o ar, entra em combustão. Quer dizer, pega fogo.
- Mas porquê o Boitátá persegue quem corre dele ? Meu pai me disse que quem o vê, pode ficar cego ou louco. Deve-se ficar parado, de olhos fechados.
- Olha, provavelmente é o movimento do ar de quem foge da explosão. "Puxa" o fogo. Louco eu não sei, mas o fósforo branco pode queimar bastante. É usado em fogos de artifício, afinal.
- Hum... sei não, filho.
- Mas pense, pai. O Boitátá protege os campos e as floresta de quem planeja queimá-los. A palavra é tupi-guarani. Mboi é serpente, tata é fogo. É uma lenda, um mito.
Ficaram em silêncio por alguns minutos. Ouviram um barulho na água mas era só um jacaré saindo para a margem.
- Falando nisso, o senhor vai queimar a pastagem inteira de novo?
- Vou. E tô precisando de mais gente trabalhando lá. O pasto tá ficando ruim.
- Mas eu já te disse pai, queimar é prejuízo. O senhor não tá pensando no longo prazo. O solo se esgota. Você deveria construir um silo e armazenar o feno. A namorada de um amigo de faculdade é especialista nisso. Se o senhor quiser, posso falar com ela.
- Mas uma moça, filho ?
- Pai, com todo respeito, mas o senhor vive no passado.
Ouviram outro barulho na água e viraram para ver o que era. Era um fogo fátuo, fósforo branco em combustão. O rapaz disse com uma risada.
- Olhe, pai. O seu Boitátá.
Aterrorizados, viram uma imensa serpente com olhos em chamas emergir do rio."
- E foi assim, crianças, que seu bisavô ficou cego. E eu passei a contar estórias.
Ninguém dormiu naquela noite.